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29.11.13

Minhas (não tão) sinceras desculpas

Há quatro meses, celebrei a abertura do Café do Solar do Rosário no Largo da Ordem, em Curitiba. Desde então, tenho sido uma frequentadora assídua. Mas nem isso foi suficiente para evitar uma situação desagradável e, pior, a indiferença na reparação de tal situação.

Na quinta-feira da semana passada, dia 21 de novembro, estive com meus alunos no Café do Solar do Rosário. Aproveitei que era uma aula mais light, de orientação de trabalho, para mudar um pouco os ares. Turma pequena, não incomoda ninguém. Infelizmente, fomos super maltratados. O garçom aproximou-se de uma das mesas onde eles estavam trabalhando e disse que, se quisessem usar o wi-fi do café, deveriam consumir algo. Bom, essa história eu contei no Facebook, você pode ver mais detalhes aqui.

No dia seguinte, recebi uma mensagem das proprietárias do café. Pediam desculpas pelo ocorrido e diziam, literalmente: “Gostaríamos de poder contar com sua colaboração e tentar reparar o fato de alguma maneira”.

Mesmo em meio a tantas falas vazias nos dias de hoje, a intenção delas me pareceu autêntica. Fiquei aliviada por acreditar que havia uma disposição sincera em consertar o que havia ocorrido, já que eu gostava do Café. Normalmente, quando um funcionário de uma empresa faz esse tipo de coisa, não é porque ele decidiu assim. Ele o faz por orientação dos patrões ou por entender a política da organização e agir de acordo com ela. Achei que este caso era uma exceção.

No clima de boa vontade que parecia estar pautando o nosso diálogo, escrevi um longo e-mail explicando o hábito que tenho de levar os alunos para aulas em locais diferentes; falei deles, dos seus valores, do quanto ficaram chateados; abri meu coração, na crença de que haveria empatia, e que elas concordariam com a reparação que eu pedia: apenas e simplesmente que fossem até a nossa instituição na segunda-feira seguinte e pedissem desculpas à turma, explicando a eles exatamente o que tinham dito a mim nas mensagens (estamos a dois passos do Café, muito perto).

Qual não foi minha surpresa ao receber uma negação deste simples pedido. Depois de se mostrar feliz com o esclarecimento do ocorrido e de dizer que queria muito estar comigo pessoalmente (retórica), uma das proprietárias explicou que não poderiam ir até a faculdade. Ela, por problemas de saúde. A filha, por precisar buscar as crianças na escola.

Respondi novamente, agora ciente de que havia sido ingênua e que nunca houve um real desejo de reparação. Disse que seria muito importante que fossem até a faculdade, que poderiam escolher duas outras datas – na terça ou na quinta –, que poderiam enviar outra pessoa para falar em nome delas. Acredito ter sido bastante flexível e razoável.

Esperei até hoje para escrever este relato porque ainda tinha uma tênue esperança de que entrassem em contato. Só que isso não aconteceu. Não responderam mais. Todas aquelas fórmulas gentis e a intenção de se desculpar – “tentar reparar o fato de alguma maneira”, nas palavras delas – não passou de retórica, deste tipo de coisa que as pessoas educadas falam somente por falar, mas que não correspondem a um sentimento autêntico.

No fim das contas, parece mesmo que o funcionário que constrangeu meus alunos agia de acordo com o estilo de gestão de suas patroas. Um estilo que julga as pessoas que merecem ou não receber um bom tratamento. Que se pauta, ainda, por aquele provincianismo de achar que uns são melhores do que outros. E onde a polidez é algo superficial, um verniz que não sobrevive à necessidade de ser humilde e reconhecer um erro. Antes manter a pose que pedir desculpas de maneira correta.


É uma pena, Café do Solar. Minha presença e a dos meus alunos vocês não terão mais. Provavelmente, não faremos falta. Mas o mercado está mudando. Um dia, vocês e outros negociantes entenderão que qualquer consumidor é um bom consumidor, independentemente do sobrenome, da aparência ou do tamanho da conta bancária. Vocês dependerão deles para sobreviver. A não ser que a empresa não seja um negócio, mas apenas um passatempo de madame. Neste caso, continuem sem se importar.

24.9.13

Azul é seu manto

Presidente Dilma discursa na ONU.

Hoje a presidente Dilma discursou na ONU e fez algo que muito chefe de estado cabra-macho ainda não havia feito: botou o pau na mesa e deu bronca nos americanos. Dilma foi firme, assertiva, falou sem ler*. Repudiou a espionagem que os EUA teriam feito na internet brasileiras. E resumiu bem, em dois aspectos, o porquê da gravidade de tal ato: "sem o direito à privacidade não há verdadeira liberdade de expressão e opinião e, portanto, não há efetiva democracia. Sem respeito à soberania, não há base para o relacionamento entre as nações".


Vi o discurso pela TV na hora do almoço. Me surpreendi com uma Dilma vestida de azul escuro, tão diferente do vermelho ou das cores mais claras e dos tecidos estampados de outras ocasiões. E como essa mudança cromática reforçou a contundência e pertinência das palavras dela.



Uma busca por imagens no Google, a partir dos termos Dilma + discurso + ONU resulta neste conjunto de fotografias.  Em outras ocasiões, a presidente usou roupas mais claras e de cores mais vivas.

Imediatamente, me lembrei das madonas que vi neste final de semana em duas exposições em São Paulo: Deuses e Madonas – A arte do sagrado, do acervo do Masp, e Mestres do Renascimento, no Centro Cultural Banco do Brasil. Ambas trazem diversas telas da Virgem Maria segurando o Menino Jesus.

Há todo um simbolismo nas representações das madonas. Maria é comumente retratada usando uma roupa vermelha coberta por um manto azul. Enquanto o vermelho faz referência ao aspecto humano da Virgem, o azul remete ao celestial. Vermelho é mulher, azul é santa. Vermelho profano, azul, sagrado.




Maestro del Bigallo, Virgem em Majestade com o Menino e Dois Anjos (cerca 1275): uma das madonas expostas no Masp.

Ver Dilma abandonar o tão caro tailleur vermelho (uma cor que está entre as minhas preferidas) pelo sóbrio azul escuro me fez pensar que a presidente fez elevar a importância do chefe de estado brasileiro entre as outras nações. Parece que estamos deixando um pouco de lado aquela coisa demasiado humana, mundana e profana, que tanto caracteriza o Brasil no exterior, para conquistarmos um espaço no Olimpo, no solo sagrado, entre os deuses.

Dilma nunca foi do estilo Cristina Kirchner, Deus me livre, mas hoje estava mais para um look Angela Merkel. Seu traje confunde-se cromaticamente com o cinza-escuro do púlpito de onde discursou. Seu colar e brincos (que também não são mais as clássicas, mas também frágeis e castas pérolas) e seu cabelo dourado reiteram o dourado do emblema da ONU, no mesmo púlpito. 


Juntemos o tom de voz, a postura e as roupas e temos figuras plásticas que homologam o conteúdo da fala da nossa presidente. Dilma, e o Brasil, ornam com a seriedade e com a importância das nações mundiais "desenvolvidas". E a maior prova dessa conquista é o mimetismo tranquilo, suave, que se deu entre a presidente o cenário. O Brasil não é mais um convidado, um outro, um agregado: ele faz parte, se mistura com o mundo. E, pela voz e pelos culhões da presidente, exige respeito.


* Update: o Leo Cardozzo gentilmente me alertou que a Dilma leu o discurso. Tem um TP transparente, no cantinho da fotografia.







9.6.13

De mulher pra mulher: quando o assédio é feito por ELAS

Muita gente não entende quando se reclama do assédio nas ruas, ou street harassment. Alguns homens dizem: "agora não dá nem pra elogiar mais!". Há uma grande diferença entre o elogio e o assédio. O elogio é para fazer O OUTRO se sentir bem. O assédio é para fazer O ASSEDIADOR sentir-se bem, a partir do sentir-se mal do outro. E entre esses dois polos, existem palavras, gestos e atitudes que estão mais relacionados com um, mais relacionados com outro. Enfim, é cultural.

Não poucos autores, da psicologia à semiótica, falam de uma violência que é da ordem do olhar, ou das palavras. Não chega a ser um soco, um tapa, uma contusão que vai deixar marcas roxas e membros quebrados, mas é uma agressão que fere na alma. Dói mais ou dói menos? Acho que não existe medida pra isso. O importante é saber que UM se satisfaz com a dor, ou o constrangimento, ou o sofrimento, ou a humilhação do OUTRO.

Boa parte desse tipo de assédio está fundado nos aspectos da sexualidade e do poder. Alguns olhares e palavras querem dizer "olha só o que eu poderia fazer com você agora". E esse "o que", no assédio, obviamente, nunca é algo que a outra pessoa quer. É um tomar à força, um invadir, um desrespeitar o direito que cada um tem de dizer sim ou não, INDEPENDENTEMENTE do que estiver vestindo/falando/bebendo etc.

A "justificativa" para o assédio, então, parte de elementos da aparência de alguém que, para o assediador (e para a sociedade, evidentemente, porque ele não vai tirar a ideia do nada), significam que a pessoa assediada "merece", "está pedindo". Pode ser a roupa, pode ser a forma do corpo ou pode ser, simplesmente, aquilo que "indica" o gênero feminino. Mas se tal tipo de assédio é algo típico de uma sociedade machista e patriarcal, não se pode dizer que, nesse sistema, TODA a vítima é mulher e TODO algoz é homem. Homens também são afetados pelo "machismo", assim como também existem mulheres "machistas".

Fiquei com vontade de escrever sobre isso depois de três cenas vivenciadas essa semana aqui na Itália.

Cena 1: cruzamento movimentado em Milão. Cidade grande, cosmopolita. Calor dos infernos. Sinal fechado para pedestres e também para os veículos de uma das pistas da rua próxima.

Entre tantas pessoas que esperam para atravessar, uma mulher usando shorts e camiseta. Tudo muito "decente", se é pra a gente usar esse tipo de critério. Na rua, um grupo de oficiais da polícia municipal em motocicletas. Um deles, o da frente, olha acintosamente para a moça, medindo-a de alto a baixo. Seu olhar não é de admiração. É de desafio. É de afronta. É sexualmente agressivo.

Ela não olha para ele (não viu? Fingiu que não viu?). Ele não tira os olhos dela. Para ele, não basta admirar uma mulher bonita (digamos que fosse esse o objetivo...). Ele só estaria satisfeito se ela visse como ele olha para ela, tudo o que o olhar dele diz que poderia estar fazendo com ela ali na rua, ela querendo ou não.

Acho que isso me fez refletir sobre uma das diferenças entre o elogiar e o assediar: ele QUERIA que ela SOUBESSE.

Cena 2: tabacaria em Bologna. Cidade menor, mas que ainda assim se pretende cosmopolita, habitada por gente de todas as partes do mundo. Calor dos infernos.

Uma mulher entra no pequeno comércio para comprar um passe de ônibus e dois envelopes. Ela veste uma saia longa, uma regata e uma écharpe (tudo muito "decente"). Duas outras mulheres atendem no balcão: uma bem jovem e outra mais velha. A cliente dá bom dia e a mulher mais moça responde, olhando para o traje da cliente e dizendo com bastante ironia: "ma che calorosa a signora...".

Cena 3: ainda Bologna. Sábado à noite. Calor dos infernos. Uma mulher usa saia um pouco acima do joelho e camiseta preta com um decote discreto (tudo muito "decente"). Ela caminha por três quilômetros até o ponto de encontro com sua amiga. Passa por diversos homens, alguns estrangeiros. Nenhum fala diretamente com ela, ou dela, ou ao menos não em um idioma que ela possa entender.

Chegando na parte nobre da cidade, ao cruzar com um grupo de homens e mulheres italianos, bem vestidos, que saem de um café, ela ouve perfeitamente uma voz feminina se elevar para dizer dela, pelas costas, sempre com ironia: "ma che caldo!".

Não sou a mulher assediada do cruzamento em Milão (sou testemunha), mas sou a mulher que foi assediada duas vezes em Bologna. Assediada por outras mulheres, que não aprovaram as roupas que eu vestia, e que fizeram questão que eu soubesse disso sugerindo que eu estava mostrando demais o corpo.

Nesse ponto, tanto o policial asqueroso de Milão como as irônicas cidadãs italianas tiveram o mesmo objetivo: fazer com que outras pessoas se sentissem mal, para o próprio prazer ou para aliviar algum recalque/frustração com o qual não conseguem lidar.

E devo confessar: no meu caso, elas conseguiram.

3.3.13

Domani, concerto em homenagem a Lucio Dalla

Eu já tinha ouvido falar em Lucio Dalla, mas até poucos dias atrás não saberia dizer quase nada sobre ele. Agora, sei que este cantante italiano nasceu em Bologna, é muito querido por aqui e, amanhã, se estivesse vivo, faria 70 anos. Lucio Dalla morreu ano passado, em Montreaux, na Suiça, pouco antes de seu aniversário, durante a turnê que fazia pela Europa.

Sigo alguns perfis bolognesi no Facebook e venho acompanhando a movimentação em torno das comemorações desta data. Um destes perfis, o Succede Solo a Bologna (uma associação que visa preservar os costumes e as tradições da região, inclusive seu dialeto), promoveu hoje um evento chamado Una Canzone per Lucio. Ao meio-dia em ponto, todos deveriam abrir suas janelas e colocar para tocar uma canção de Dalla (e de Paola Palotino) chamada "4 Marzo 1943" (ano passado essa homenagem também foi feita e mais de 10 mil pessoas participaram, segundo a associação).



Empenhada em vivenciar da maneira mais próxima possível os hábitos da cidade, confirmei minha "presença" no evento. Primeiro passo: ver no YouTube a tal canção.

Qual não foi minha surpresa ao descobrir que já conhecia a música, mas em outra língua e na voz de outro grande cantor? "4 Marzo", que originalmente se chamava "Gesù Bambino", teve uma versão em português composta por Chico Buarque, que nós conhecemos como "Minha História" (Dalla e Chico se conheceram durante o auto-exílio do brasileiro na Itália, em fins dos anos 70, conforme explica esse texto bem ruinzinho publicado na Gazeta do Povo).



Acordei hoje pouco antes do meio-dia, mas como não percebi ninguém se movimentando para tocar Lucio Dalla com a janela aberta, também fiquei na minha (moro a uns 2 km do centro, talvez lá tenha sido diferente). Por outro lado, pretendo participar, amanhã, do concerto em homenagem ao cantante na Piazza Maggiore. Há um enorme palco sendo montado desde a semana passada. Passei por lá hoje e vi/ouvi testes de som e de luz. O show vai ter a presença de diversos cantores italianos, dos quais conheço apenas Andrea Bocelli.

Preparativos para o concerto em homenagem a Lucio Dalla na Piazza Maggiore.

Haverá alteração nos horários e trajetos dos ônibus e táxis, para facilitar o acesso ao local. Também vai ter telão na Piazza Nettuno, ali ao lado. O show está marcado para 21h10 (17h10 no horário de Brasília) e será transmitido ao vivo pela Rai Uno (Rai 1) – emissora de TV que também é a promotora do evento (aqui um link para assistir pela internet – a conferir se funciona).

Bravo, Lucio!

26.2.13

Daqui eu não saio, daqui ninguém me tira

Ontem fui visitar um apartamento cujo anúncio tinha visto semana passada, no mural da faculdade de Ciências Sociais, que fica bem pertinho aqui do hotel. É um apartamento de dois quartos na via Pasubio, onde vive um casal de estudantes. Um dos quartos eles queriam alugar para uma ragazza.

Olhei no mapa e decidi encarar o percurso a pé até o local, do outro lado da cidade. Sabia que era longe, mas a caminhada permite sentir o clima das ruas. Depois fui ver que era uns 3 km do centro até o endereço – exceto pelo fato de que errei o caminho e tive que ir e voltar umas quadras a mais. O prêmio? Passar por esse parque, ainda coberto pela neve que caíra no final de semana.


Parco na via Pasubio, próximo a um dos apartamentos que visitei.

O apartamento era muito agradável e os moradores, idem. Continuo impressionada com a gentileza, acessibilidade e disponibilidade das pessoas por aqui, por mais que tenham dito que isso é porque sou mulher, branca, estudante e brasileira. (Parece que não andam tão cordiais com jovens imigrantes do sexo masculino com potencial para disputar os parcos empregos. A conferir.)

Na volta, peguei meu primeiro ônibus em Bologna, o número 19. Mesmo com seus 500 mil habitantes, ruas estreitas e prédios de trocentos anos (que poderiam ser prejudicados com a vibração), todos os autobus são enormes e articulados. Não tem cobrador: você pode validar um cartão que dá direito a várias viagens ou validar um bilhete (comprado antecipadamente em uma tabaccheria) que permite fazer viagens no período de 1 hora. Pode, ainda, comprar sua passagem dentro do coletivo, depositando 1,50 euro numa vending machine. O bilhete antecipado custa 1,20 euro. Quanto aos cartões, há várias modalidades. Não há ninguém controlando se você pagou ou não, se validou ou não. Porém, tá rolando uma campanha educativa: "io vado e non evado".

Em uma tradução beeeem livre, tentando manter o efeito publicitário: "é realmente malandragem não validar sua passagem. /  O transporte público é um direito, pagar a passagem é um dever, o respeito da regra é uma condição para melhorar o serviço. / Eu uso e não abuso".

Chegando ao miolo do centro histórico, próximo ao cruzamento em que a via San Felice se torna via Ugo Bassi, o ônibus parou. Pensamos que se tratava do sinal vermelho. Depois de um tempo fora do normal, o motorista abre a porta para que a gente desça. Há um Citroën parado exatamente no meio da rua, que é acesso importante para o centro e para o outro lado da cidade. A polícia está por ali, mas parece tranquila. Não é um acidente.

Não adianta fuçar aí, gente. Pra consertar esse carro, só com mestrado em engenharia eletrônica.

Pergunto ao motorista do ônibus se o carro está estragado, e ele diz que sim. "E por que não empurram?" – o verbo "empurrar" foi na base do gesto, porque não sei como se diz em italiano. Aí ele me explica que o carro está com o freio de mão puxado, e que esse freio é eletrônico e pifou. Não tem como tirar o carro dali, a não ser com um guindaste – palavras dele, se divertindo com a história. Pra terminar, me diz que posso pegar outro ônibus da mesma linha uns 300 metros à frente (nesse momento aprendo que o bilhete vale por 1 hora).

Enquanto sigo para a próxima fermata (ponto de ônibus) fico pensando: a cidade tem centenas de anos, já passou por um monte de guerras e disputas de poder e, até hoje, não conseguiram pará-la. Estava faltando um moderníssimo Citroën automático com o freio de mão puxado.







22.2.13

E la neve viene

Cheguei em Bologna na segunda-feira, 18 de fevereiro. Como já disse, dia frio, mas lindo. Muito parecido com aqueles de Curitiba em julho, quando a grama e os telhados amanhecem branquinhos de geada. Não sei se por ser mais seco ou porque a cidade é muito "fechada" (ruas estreitas, edifícios colados uns aos outros) e não venta, mas foi bem tranquilo andar na rua. Minhas roupas de frio brasileiro deram conta do recado.

Na quarta, o tempo mudou. Amanheceu nublado e garoando. A meteorologia previa neve para o dia seguinte. Quinta-feira, primeira coisa que fiz ao acordar foi olhar pela janela. O friozão e a chuvinha continuavam, mas nada de neve. Cheguei na faculdade para a aula das 11. Depois de algum tempo, olhei pela janela e percebi que a chuva tinha passado a cair em câmera lenta: as gotinhas de água, mais pesadas, estavam se transformando em leves flocos de gelo. Nada a ver com o filme de Fellini, mas não consegui evitar o trocadilho: "E la nave va", e la neve viene.

Os montes de neve no chão e os telhados brancos só apareceram hoje, sexta-feira. Difícil fugir do clichê: é um espetáculo. Capricho nos agasalhos e saio pra continuar resolvendo questões da minha estadia. Caminho mais ou menos 1 km até o escritório da Universidade que atende os estudantes estrangeiros. O trajeto tem poucos trechos com aquelas passagens sob os arcos. Assim, caminho ao ar livre, com neve caindo no casaco. O frio não é um problema. Tirando o rosto, descoberto, de resto estou quentinha. O desafio maior é não escorregar no gelo. Uso uma botinha de camurça com sola de couro, lisa. Tomo nota mentalmente: comprar um par de chuteiras. Brincadeirinha. Mas um sapato com algum tipo de "garra" ajudaria a andar mais rápido.


Calçada cheia de neve: #comofas pra não cair?...

...talvez caminhar pela neve fofa.

Descubro que vou ter que comprar mais uma stampa (um tipo de selo de autenticação) de quase 15 euros e pagar mais algumas taxas, mas ok. Saio do tal escritório e vou para a faculdade. Estou orgulhosa porque andei na neve sem passar frio, porque encaminhei mais uma documentação, porque acertei o caminho de volta sem olhar no mapa, porque não paguei mico escorregando na rua, porque consegui fazer tudo isso e ainda chegar na aula no horário.

O professor está do lado de fora da sala, olhando por uma porta de vidro para o jardim coberto de neve. Diz que ficou pensando sobre o fato de eu nunca ter visto neve antes (havíamos conversado sobre isso ontem) e que devia ser emocionante. Concordei com ele e, como meu vocabulário italiano ainda é bastante limitado, não consegui passar do è bello!.

Só que é muito mais do que bello, mesmo para um europeu que já deve ter visto muita neve na vida. Tanto que ele ainda consegue se encantar: apontou para as árvores do jardim e chamou minha atenção para o desenho formado pela espuma de gelo ao recobrir os galhos nus.


Árvores rendadas no jardim da parte de trás do prédio da faculdade.

Mais alunos chegam e nos encaminhamos para a sala. Antes de entrar, ele diz que acessou o blog hoje de manhã pra ver se tinha algum texto com minhas impressões sobre a neve. Ainda não tinha, mas agora tem. E com imagens da neve imaculada recobrindo os jardins do convento, contrastando com o avermelhado característico da arquitetura bolonhesa: a castidade das religiosas que um dia viveram em Santa Cristina e o sangue do Cristo a quem, simbolicamente, todas tomaram por esposo.


Neve em contraste com a típica arquitetura avermelhada de Bologna: la rossa (um dos apelidos da cidade) vira la bianca.

18.2.13

Gaiatices de Bologna

Uma das muitas plaquinhas gaiatas nas paredes da Osteria Broccaindosso: "Algumas mulheres amam tanto o próprio marido que, para não gastá-lo, usam o marido das amigas!".

Primeira vez na Europa, primeira na Itália, primeiro dia dos mais ou menos 150 que passarei em Bologna para o doutorado sanduíche. Aterrisso com céu lindo, uns 8º de temperatura. Claro que me lembrou Curitiba em julho. Cheguei no hotel mais ou menos na hora do almoço, morta de cansaço. Dormi a tarde toda, acordei no começo da noite.

Depois de um banho maravilhoso, coloco segunda pele, gola alta fininha, gola alta de malha grossa preta, meia-calça, calça cor de areia de veludo fake, casaco de lã C&A velho-pra-caralho cor-de-camelo e manta de lã acrílica preta, e assim estou pronta para desbravar Bologna.

Peço ao senhorzinho da recepção, em portuliano fluente, uma sugestão de lugar bom&bonito&barato pra jantar. Ele me chama de signorina (já adorei o vovô!), faz um mapinha e lá sigo eu, pela agora escura rua do hotel, a estreitinha Strada Maggiore (herança medieval da cidade).

Friozão delicioso. Diz o Weather Channel que está 1º. Poucas pessoas na rua, mas todas jovens. As calçadas ficam sob enormes marquises com arcos, sobre os quais estão prédios antigos de portas enormes (tipo porta de castelo) que abrigam de tudo: consultórios, academia de yoga, apartamentos. Vendinhas e quitanda ainda abertas, mesmo às 10 da noite.

Viro na stradina da Osteria Broccaindosso. Na rua, tudo silencioso e vazio. Mas quando entro no local, é outro mundo: pequena e aconchegante, a osteria está cheia de gente. A maior parte das mesas está ocupada por grupos de pessoas. Parecem ser habitués do local, pois conversam com o dono.

Conseguem uma mesa pra mim na parte de trás. Lá também há grupos, mas de gente mais jovem, alguns falando italiano, outros, inglês. Não parecem turistas. Devem ter relação com a universidade (a faculdade de Ciências Políticas é bem perto dali).

Osteria é um restaurante simples e muito familiar, mais simples ainda que uma trattoria. Por isso, quando peço o menu à garçonete (filha do dono?) faz sentido ela dizer que não há menu: é só “vocale”. Recita uma lista de antipasti e depois de primi piatti. Entendo o suficiente pra ter uma noção do que são os pratos e escolho uma massa feita à base de ovos, parmiggiano e pão amassado, chamada passatelli, acomapanhada de pedaços de coração de alcachofra. Também me dou ao luxo de uma taça de vinho tinto da casa.

O passatelli chega rápido, servido num prato fundo (como aqueles de sopa) e relativamente pequeno. Estou com uma fome razoável e penso se não vai ser pouco (afinal, uma refeição italiana completa tem entrada, primeiro prato, segundo prato, um terceiro, além de queijos e sobremesa).

A massa, como se fosse um espaguete bem grosso e mais curto (não é de enrolar com o garfo), é divina. Olho maior que a barriga: o prato é mais do que suficiente. Como tudo, me esbaldo, mas não conseguiria comer mais.

O dono vem limpar a mesa e pergunta se eu quero o secondo piatto. "Non, grazie!" E sobremesa? Também recuso e, lembrando de uma das aulas de italiano, peço: "vorrei un caffè".

[A parte da sobremesa vale um comentário: a mesa ao lado pediu dolci. Ouvi a garçonete recitando as opções. De repente, chegam várias travessas: uma mousse de chocolate, uma torta, uns bolinhos que parecem sonhos redondinhos, uma calda de chocolate. E as pessoas da mesa vão se servindo dessas travessas, à vontade! Não sei qual é o esquema, se paga por cabeça. Mas fiquei impressionada! P.S.: veja as resenhas no Trip Advisor, no link sobre a Osteria logo acima.]

Meu espresso chega, curto do jeito que gosto (não pedi que fosse assim, pelo jeito é default) e com um sachê de açúcar. Nada dessa frescura de adoçante (nas refeições do voo da Alitalia também não tinha adoçante). Logo em seguida, o dono coloca um prato na minha frente com um pedaço de torta. Vai ver ele não se conformava que eu não havia pedido dolci! Apesar da caixa de bombons (presente de despedida de uma tia!) que me esperava no quarto do hotel, é evidente que não recusei. A torta era leve, de sabor suave. Pensei ter sentido gostinho de laranja. Pergunto: “arancia”? “Non, amarene.” Estranho uma torta de cereja que é amarela, mas enfim... Peço mais um café pra acompanhar a torta. Depois, ainda lembrando das aulas de italiano, toda orgulhosa, solto um “il conto, per favore”.

Confesso que rolava um certo receio sobre o valor do conto. Como não tinha menu, também não sabia os preços. A placa do lado de fora dizia que os pratos custavam entre 12 e 20 euros. Torci para o meu estar entre os mais baratos. Bom, eu devo estar com muita cara de cachorro caído de mudança, porque o prato, o vinho, dois cafés e a sobremesa (que tinha sido cortesia, ok), saíram por 13 euros.

Parece que a opinião do italiano que veio ao meu lado no voo do Rio para Roma tem sua razão de ser: disse ele que Bologna é a cidade italiana onde melhor se come e onde as pessoas são mais simpáticas.

Update em 22/2/2013: hoje passei em frente à Osteria e fotografei a entrada.



27.1.13

245 mortos em Santa Maria: a culpa também é nossa

 Créditos da imagem: W Arte Pop.

Provavelmente você vai se chocar com essa informação. Mas sabe de quem é parte da culpa pela tragédia da boate em Santa Maria? Minha. Sua. De todo mundo que frequenta bar e balada e acha que, por ser divertimento, não precisa exigir ser bem tratado, ter segurança, pagar um preço justo pelas coisas.

Perto de não ter segurança, o resto é o de menos. Mas tudo faz parte do mesmo princípio. Quando você paga uma grana para ENTRAR em um lugar, o mínimo que a casa pode oferecer é banheiros limpos, papel higiênico, sabonete e papel para enxugar a mão, bom atendimento e seguranças que não sejam estúpidos e trogloditas.

Há alguns dias, estive no Santa Marta, um bar famoso de Curitiba, na região do Batel. Um lugar com comida e música boa, mas chopp a preço extorsivo e que... cobra para entrar. Você fica p... da vida se tiver que esperar 40 minutos na fila do banco, não? Mas as pessoas, ali, ficaram quieitinhas esperando todo esse tempo para pagar a conta e sair do bar. Preocupação zero em agilizar o atendimento.

Ah, o preço da entrada é para pagar as atrações. Parte, sim. Mas se você é músico, sabe o quanto recebe desse valor. Algumas casas são justas, outras exploram as bandas.

Talvez você seja muito jovem, seja estudante, e ache tudo isso uma caretice. Afinal, hora de diversão não é hora de pensar nessas coisas. Repense. Dê valor ao seu dinheiro – que, normalmente, a não ser que você seja rhyca ou rhyco, nessa fase da vida é pouco e suado. Exija um tratamento adequado, conforto, segurança. E não deixe que se crie um ambiente onde esse tipo de tragédia fica mais fácil de acontecer.